As relações de consumo no período de calamidade decorrente da Covid-19

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Apesar de já terem ocorrido pandemias que assolaram o mundo e existir previsão de especialistas sobre ocorrência periódica de doenças capazes de atingir todo o planeta, o exato momento de seu surgimento, bem como a extensão e os danos causados são imprevisíveis. 

Diante da total imprevisibilidade e impossibilidade de qualquer forma de controle de sua ocorrência e possíveis efeitos, tais fatos são classificados pela doutrina e jurisprudência como força maior ou caso fortuito (não cabe no presente texto a diferenciação entre os dois institutos, pois há grande discussão doutrinária) e são tratados de acordo com as peculiaridades de cada campo do direito.

Nas relações de consumo há controvérsias sobre a possibilidade do caso fortuito ou força maior isentar a responsabilização do fornecedor, pois impera a regra da responsabilidade objetiva, ou seja, não se discute a existência de culpa ou dolo e, portanto, basta a ocorrência do ato, dano e nexo de causalidade. 

Ademais, o artigo 14, § 3° do Código de Defesa do Consumidor traz como possibilidades de isenção de responsabilidade do fornecedor apenas a inexistência do defeito e a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros, deixando de tratar expressamente da força maior ou caso fortuito.

Entretanto, em que pese as discussões doutrinárias, os órgãos de defesa do consumidor apresentaram cartilhas e notas de orientação, nas quais defendem alguns direitos dos consumidores e aconselham conversa conciliatória entre consumidores e fornecedores mesmo que estes últimos não sejam os causadores dos eventos. Tal como dito pelo diretor-executivo do Procon-SP:

“Ainda que as empresas não sejam as responsáveis pelo problema, é fundamental que prestem orientação e estejam abertas a negociar soluções viáveis e satisfatórias, com razoabilidade”.

Já o IDEC – Instituto de Defesa do Consumidor tem orientado os consumidores sobre a possibilidade de realizar cancelamentos de produtos, matrículas de academias, cursos, devolução de equipamentos comprados, entre outros, além de tratar sobre a prestação de serviços essenciais. Igualmente, a OAB/SP lançou cartilha denominada “Direito do Consumidor – Covid-19 (Coronavírus)” orientando os consumidores sobre seus direitos mínimos nesse período. 

Em suma e diante do difícil cenário, todos esses órgãos têm orientado os consumidores a tomarem as seguintes ações, caso seja verificado:

abuso de preços: realizar denúncias ao Procon por ofensa ao artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor (o site do Procon-SP informa que já autuou empresas por aumento do preço de máscaras e álcool em gel, bem como visitou supermercados denunciados);

propaganda enganosa: destacam a necessidade de realizar denúncias ao Procon, pois informações verídicas são fundamentais, principalmente durante a crise;

cancelamento de shows, casamentos, formaturas, entre outros: deve ser preservada sempre a saúde do consumidor (art. 6°, I, do Código de Defesa do Consumidor) e, portanto, o consumidor pode optar pela devolução dos valores sem a cobrança de multa ou remarcação do evento e, ainda, obtenção de créditos para utilização no futuro;

necessidade de cancelamento de matrículas em academias, escolas e cursos: em relação às academias, os alunos podem cancelar a mensalidade sem o pagamento de multa, o mesmo ocorre quanto às escolas e cursos, caso não consigam exibir aulas on-line ou postergá-las. Importante destacar sobre a permanente possibilidade, em ambos os casos, de negociar com o fornecedor e postergar a permanência na academia ou no curso após o período contratado, por exemplo;

troca e devolução de produtos: o consumidor não pode ser obrigado a comparecer no local de troca ou correios e o importante é a manifestação do consumidor por e-mail ou telefone (com anotação dos protocolos) dentro do prazo de devolução ou de garantia do produto a fim de verificar a política realizada pela empresa.

A OAB/SP lançou, ainda, a “2ª Cartilha sobre Direitos do Consumidor COVID-19 (Coronavírus)”, em 13 de abril de 2020, orientando os consumidores a como se portarem para evitar casos de fraudes eletrônicas e cuidados na aquisição de bens e serviços pela internet, tendo em vista o aumento de aquisições de produtos de forma on-line.

Apesar das orientações serem bastante favoráveis ao consumidor – e devem ser, já que é a parte mais vulnerável da relação – é necessário considerar o impacto financeiro para os pequenos fornecedores que sofrerão bastante com os cancelamentos e devoluções de valores. Por exemplo, uma pequena academia de bairro terá perdas significativas que poderão levá-la ao encerramento de suas atividades, diferentemente de uma grande rede que terá mais fôlego para aguentar a pandemia. A negociação com boa-fé e razoabilidade de ambos os lados é sempre a melhor saída.

Nesse sentido, o Governo Federal, na tentativa de resguardar as companhias aéreas dos constantes pedidos de devolução de valores de passagens, adotou a Medida Provisória n° 925 de 18 de março de 2020, a qual determina que o prazo para reembolso das passagens aéreas canceladas é de 12 (doze) meses. Além disso, a medida isenta os consumidores de pagar taxas em caso de remarcação das passagens em até doze meses, pois, normalmente, é bastante custoso remarcar datas de passagens aéreas. 

As mesmas disposições constam do “Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)” firmado em 20 de março de 2020 entre as principais companhias aéreas do Brasil e o Ministério Público. Conforme o TAC, há a necessidade de disponibilização de um canal de atendimento direto pelas empresas e o pagamento de multa em caso de descumprimento do acordo firmado.

Outra medida que está em discussão – e essa não é tão favorável ao consumidor – é o texto do artigo 8° do Projeto de Lei n° 1179 de 2020 que suspende a aplicação do artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor, até 30 de outubro de 2020, na hipótese de entrega domiciliar de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos. O referido artigo 49 trata do direito de arrependimento – em compras por telefone ou on-line, por exemplo – no prazo de 7 (sete) dias a contar da assinatura do contrato ou recebimento do produto. O objetivo da suspensão temporária é evitar oportunismos e garantir que os fornecedores não sejam lesados nesse período de crise. 

Ressalta-se, ainda, que o Governo do Estado de São Paulo editou o Decreto n° 64.881 de 2020 que determinava a quarentena até 07 de abril de 2020 – a qual foi prorrogada até 22 de abril de 2020 – suspendendo o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comercias, shoppings, academias, entre outros, a fim de evitar a aglomeração de pessoas. 

É de se observar que foi suspenso o atendimento “presencial” e ficaram ressalvadas as “atividades internas”, ou seja, o fornecedor deve manter um canal de atendimento com o público para a prática de cancelamentos, devoluções de valores, postergação, suspensão ou negociação de contratos, etc.

Portanto, apesar da legislação consumerista e das orientações dos órgãos de defesa do consumidor serem bastante favoráveis à parte mais vulnerável da relação, é extremamente importante a razoabilidade e boa-fé dos dois lados na negociação a fim de se impedir a quebra de empresas – principalmente as menores, que são maioria no país – e o alastramento da crise econômica.

 

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Roberto Cunha