Relação de Consumo – Necessidade de interpretação menos restritiva do Código de Defesa do Consumidor

Todos fomos bombardeados com propagandas sobre o dia do consumidor – 15 de março – e com lojas estendendo este dia para a “semana do consumidor” e, até mesmo, para o “mês do consumidor”. Recebemos as propagandas mais variadas e que visam atingir a maior quantidade de público em uma tentativa dos fornecedores de se recuperarem de um ano bastante difícil.

 

Aproveitando esta data e passado um ano do início dos procedimentos de quarentena pela covid-19 no Brasil, é importante refletirmos sobre a relação de consumo durante a pandemia e a importância de uma interpretação mais ampla do Código de Defesa do Consumidor, objetivando garantir uma relação mais equânime em tempos de forte crise econômica.

 

POSSIBILIDADE DE BILATERALIDADE NA REVISÃO DOS CONTRATOS DE CONSUMO  

 

Um exemplo para que se alcance uma relação mais igualitária é a possibilidade de bilateralidade na revisão dos contratos de consumo, pois atualmente, a revisão é prevista apenas como direito do consumidor em caso de desproporcionalidade, conforme o artigo 6°, inciso V do Código de Defesa do Consumidor:

 

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (…)

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”

 

Todavia, diante do atual cenário econômico, a interpretação restritiva do Código de Defesa do Consumidor – no sentido de proteger unicamente o consumidor – agrava a crise econômica, atingindo diretamente setores da economia que geram empregos e movimentam o mercado nacional.

 

Tal mudança de paradigma consistiria em relevante alteração para os fornecedores, principalmente, quando pensamos em pequenos comércios, academias, bares, restaurantes e prestadores de serviço que encontram grande dificuldade para superar este momento em que muitos são levados à falência.

 

RECONHECIMENTO DE CASO FORTUITO E AFASTAMENTO DO DEVER DE INDENIZAR

 

Outro exemplo de interpretação menos restritiva do Código de Defesa do Consumidor é a inclusão do “caso fortuito e força maior” (eventos imprevisíveis e sem possibilidade de controle de seus efeitos) como excludentes de responsabilização pelo fornecedor, apesar de não contidos expressamente no artigo 14, 3º do Código de Defesa do Consumidor:

 

“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (…)

§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.”

 

Embora não seja unânime, a excludente de responsabilidade oriunda do caso fortuito e força maior vem sendo aplicada pelo Poder Judiciário na relação de consumo, como decorrente do artigo 393 do Código Civil:

 

Ação de indenização. Estacionamento. Chuva de granizo. Vagas cobertas e descobertas. Art. 1.277 do Código Civil. Código de Defesa do Consumidor. Precedente da Corte.

  1. Como assentado em precedente da Corte, o “fato de o artigo 14, § 3° do Código de Defesa do Consumidor não se referir ao caso fortuito e à força maior, ao arrolar as causas de isenção de responsabilidade do fornecedor de serviços, não significa que, no sistema por ele instituído, não possam ser invocadas. Aplicação do artigo 1.058 do Código Civil” (REsp n° 120.647-SP, Relator o Senhor Ministro Eduardo Ribeiro, DJ de 15/05/00).
  2. Havendo vagas cobertas e descobertas é incabível a presunção de que o estacionamento seria feito em vaga coberta, ausente qualquer prova sobre o assunto.
  3. Recurso especial conhecido e provido.

(REsp 330.523/SP, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/12/2001, DJ 25/03/2002, p. 278)

 

Atualmente, há algumas decisões[1] excluindo a responsabilidade do fornecedor em razão de assaltos (caso fortuito e força maior) – os quais, infelizmente, são comuns no país – com a argumentação de que a prevenção de crimes e proteção da sociedade consiste em dever do Estado.

É de se observar que a exclusão de responsabilidade do fornecedor no caso acima consiste em interpretação mais ampla do Código de Defesa do Consumidor e ajuda sobremaneira a sobrevivência de negócios em tempos de crise ao evitar que o fornecedor seja responsabilizado pelo pagamento de indenizações que, na verdade, são devidas pelo Estado.

 

BUSCA POR RELAÇÃO HARMÔNICA ENTRE FORNECEDOR E CONSUMIDOR EM TEMPOS DE CRISE

 

Neste sentido, é importante destacar que não se quer minimizar os direitos dos consumidores, os quais foram conquistados com muita dificuldade e são extremamente relevantes para a pessoa física ou jurídica que adquire um bem e precisa de uma proteção mínima.

 

Busca-se, na verdade, alcançar uma relação harmônica e satisfativa para todos os envolvidos sem que qualquer lado seja prejudicado no atual cenário, o qual é bastante diferente do momento em que o Código de Defesa do Consumidor entrou em vigor.

 

Da mesma forma que a Lei Federal n. 14.010/2020, denominada “Lei Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado” (RJET) tentou proteger os dois lados de uma relação locatícia, por exemplo, é necessário que se proteja a relação de consumo de maneira equânime para impedir a falência de outros negócios.

 

Portanto, o desafio atual é a busca de um vínculo mais harmônico entre os envolvidos, sem que isso implique na restrição dos direitos do consumidor, destacando-se a importância do advogado para ajudar os fornecedores e prestadores de serviço a encontrar este caminho.

 

 

[1] RECURSO ESPECIAL – DIREITO CIVIL E CONSUMIDOR – RESPONSABILIDADE CIVIL – INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS – FORNECEDOR – DEVER DE SEGURANÇA – ARTIGO 14, CAPUT, DO CDC – RESPONSABILIDADE OBJETIVA – POSTO DE COMBUSTÍVEIS – OCORRÊNCIA DE DELITO – ROUBO – CASO FORTUITO EXTERNO – EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE – INEXISTÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR – RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. I – É dever do fornecedor oferecer aos seus consumidores a segurança na prestação de seus serviços, sob pena, inclusive, de responsabilidade objetiva, tal como estabelece, expressamente, o próprio artigo 14, “caput”, do CDC. II – Contudo, tratando-se de postos de combustíveis, a ocorrência de delito (roubo) a clientes de tal estabelecimento, não traduz, em regra, evento inserido no âmbito da prestação específica do comerciante, cuidando-se de caso fortuito externo, ensejando-se, por conseguinte, a exclusão de sua responsabilidade pelo lamentável incidente. III – O dever de segurança, a que se refere o § 1º, do artigo 14, do CDC, diz respeito à qualidade do combustível, na segurança das instalações, bem como no correto abastecimento, atividades, portanto, próprias de um posto de combustíveis. IV – A prevenção de delitos é, em última análise, da autoridade pública competente. É, pois, dever do Estado, a proteção da sociedade, nos termos do que preconiza o artigo 144, da Constituição da República. V – Recurso especial improvido. (REsp 1243970/SE, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012)

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Roberto Cunha