[Direito Tributário] Os incentivos fiscais relativos ao ICMS e o seriado The Walking Dead

Traçar um paralelo entre incentivos fiscais e um famoso seriado que trata da luta de sobreviventes num mundo dominado por mortos-vivos parece absurdo?

 

Sim. Mas, apesar de absurdo, é muito pertinente se atentarmos para a postura adotada pela Receita Federal em relação ao tratamento tributário a ser dispensado a tais incentivos.

 

A não incidência do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre o montante correspondente aos incentivos fiscais relativos ao ICMS, em especial os créditos presumidos desse imposto, é discussão antiga que já deveria ter sido superada, seja por força do entendimento pacífico de nossos Tribunais, seja por força de disposição legal expressa acerca desse tema.

 

Apesar disso, a Receita Federal do Brasil “exumou” a discussão, trazendo-a de volta a vida para assombrar os contribuintes.

 

Para que não restem dúvidas em torno dessa afirmação, vale traçar um retrospecto histórico.

 

Inicialmente, cabe lembrar que vários Estados, visando ao incremento das atividades econômicas em seus territórios, instituíram incentivos fiscais na área do ICMS, dentre os quais destaca-se a concessão de créditos presumidos desse imposto.

 

Esse benefício consiste, em linhas gerais, na possibilidade do contribuinte lançar determinado valor de ICMS sobre suas vendas e, no momento da apuração do montante a ser recolhido aos cofres públicos, deduzir daquele valor lançado um determinado percentual a título de crédito.

 

Vale dizer, o contribuinte, a cada operação que realiza, reconhece como devido um determinado valor e, ao final do período de apuração do imposto, lança um montante como redutor do devido – o crédito presumido.

 

Sem adotar os termos técnicos adequados, nos registros contábeis, o montante de ICMS lançado a cada venda representa uma despesa com tributos e, em contrapartida, os créditos presumidos apropriados representam uma recuperação dessa despesa.

 

E, foi exatamente a sujeição dessa recuperação de despesa à tributação o “pomo da discórdia”.

 

Inicialmente, a RFB, sob o argumento de que os créditos presumidos não se caracterizavam como subvenções de investimento e, nessa medida, representavam efetiva receita tributável, passou a autuar os contribuintes que não incluíam o valor desses incentivos nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.

 

Não se pode perder de vista que, sob esse mesmo argumento, as autuações também abrangiam as contribuições PIS e COFINS.

 

Diante dessas exigências os contribuintes buscaram tutela judicial para afastá-las.

 

Após apreciar um sem número de discussões judiciais em torno dessas exigências, o Superior Tribunal de Justiça, nos idos de 2017, em decisão dos Embargos de Divergência em REsp nº 1.517.492-PR (julgado pela Primeira Seção, em 08/11/2017) firmou entendimento no sentido do descabimento da exigência dos tributos federais sobre o valor dos créditos presumidos, sob os seguintes fundamentos:

 

i) quanto ao IRPJ/CSLL: A inclusão dos créditos presumidos na base de cálculo desses tributos representa interferência da União na política adotada pelos Estados, ofendendo o princípio federativo e a segurança jurídica e, o valor a eles correspondente não caracteriza lucro; e,

 

ii) quanto às contribuições PIS/COFINS: Afastou-se também a incidência dessas contribuições aplicando-se aos créditos presumidos a mesma lógica adotada na decisão do RE 574.706/PR do STF, ou seja, os créditos presumidos não caracterizam receita passível de inserir nas respectivas bases de cálculo.

 

Cabe notar que a mencionada decisão do STJ não aborda qualquer distinção entre subvenções para investimento ou para custeio, considerando todo e qualquer crédito presumido do ICMS como alheio à base de cálculo dos tributos federais.

 

Especificamente quanto à inclusão dos créditos presumidos nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL, a questão foi levada à apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) em regime de repercussão geral (Tema 957).

 

Todavia, o STF decidiu pela inexistência de repercussão geral do tema, por considerar a discussão de natureza infraconstitucional, não merecendo a apreciação deste Tribunal.

 

Não bastasse o entendimento jurisprudencial contrário à exigência dos tributos federais sobre os créditos presumidos do ICMS, a Lei Complementar nº 160/2017, acrescentou o § 4º ao artigo 30 da Lei nº 12.973/2014, dispondo:

 

“§ 4º Os incentivos e os benefícios fiscais ou financeiro-fiscais relativos ao imposto previsto no inciso II do caput do art. 155 da Constituição Federal, concedidos pelos Estados e pelo Distrito Federal, são considerados subvenções para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo.”

 

Assim, todos os incentivos relativos ao ICMS concedidos pelos Estados foram definidos como subvenções para investimento, afastando a possibilidade da inclusão do valor correspondente nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.

 

Posteriormente, tendo sido provocada por um contribuinte, a RFB, por intermédio da Solução de Consulta COSIT nº 11, de 04 de março de 2020, manifestou-se no sentido de que, a partir da promulgação da Lei Complementar nº 160/2017, todos os incentivos fiscais ou financeiros fiscais relativos ao ICMS caracterizam-se como subvenções para investimento não devendo ser computados no lucro real, nem tampouco na base de cálculo da CSLL.

 

Então, tendo a RFB observado a inovação trazida pela Lei Complementar nº 160/2017, estão afastadas as preocupações dos contribuintes beneficiários de incentivos relacionados ao ICMS?

 

A resposta é não!

 

Em 15 de dezembro de 2020, a RFB, por meio da Solução de Consulta COSIT nº 145, reformou a manifestação expressa na Solução de Consulta COSIT nº 11, trazendo o novo entendimento segundo o qual somente são passíveis de não inclusão no lucro real e na base de cálculo da CSLL, os incentivos relativos ao ICMS comprovadamente concedidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.

 

Vale dizer que, ignorando todos os precedentes jurisprudenciais e em franco desrespeito ao quanto definido pela Lei Complementar nº 160/2017, a RFB sinalizou claramente que prosseguirá questionando a não tributação dos incentivos fiscais relativos ao ICMS, exigindo dos contribuintes a comprovação da natureza desses benefícios.

 

Como dito acima, embora essa questão estivesse sepultada, a RFB se empenha bravamente em trazê-la de volta do túmulo, lançando as trevas da insegurança sobre os contribuintes.

 

Os amantes do famoso seriado provavelmente ficarão surpresos em perceber que a voracidade arrecadatória pode trazer à realidade seus pesadelos mais insólitos.

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Roberto Cunha